Um retrato da resistência feminina pela câmara de Dea Kulumbegashvili
A realizadora georgiana Dea Kulumbegashvili regressa às origens com Abril, a sua mais recente obra, e fá-lo de forma contundente. O filme, proibido na Geórgia, estreia agora em Portugal como um grito silencioso sobre a erosão dos direitos reprodutivos das mulheres. No centro da narrativa está Nina, uma médica obstetra que pratica abortos clandestinos numa região remota, enfrentando o peso da clandestinidade, do isolamento e do julgamento constante.
Heroísmo fora do palco
Kulumbegashvili afirmou que quis explorar o conceito de heroísmo longe dos clichés: não o herói grandioso, mas os pequenos atos de coragem, muitas vezes invisíveis. Nina vive a sua missão quase como uma condenação, com uma rotina solitária imposta pela necessidade de resistir. Não há glória, apenas um compromisso com aquilo que sente ser justo.
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A estética do tempo suspenso
Tal como em O Começo, o seu filme anterior, a realizadora aposta em composições visuais rigorosas e numa narrativa que desafia a pressa. O tempo torna-se protagonista: o tiquetaque de um relógio numa audiência hospitalar, a languidez das horas que esmagam a protagonista, a sensação de um cerco sem saída. Esta escolha aproxima Kulumbegashvili de nomes como Nuri Bilge Ceylan, que transformam a contemplação em ferramenta dramática.
Entre o íntimo e o político
Se, por um lado, Abril mergulha na solidão existencial de Nina, por outro, inscreve-se num debate urgente: a autonomia das mulheres sobre os seus corpos. A resistência não se expressa aqui em gritos ou pancartas, mas na serenidade trágica de quem continua a agir apesar da clandestinidade. A própria realizadora sublinha que, por vezes, a serenidade pode ser o gesto mais revolucionário de todos.
Uma luta que transcende fronteiras
Apesar de enraizado na realidade georgiana, o filme dialoga com contextos internacionais. Num mundo em que o retrocesso dos direitos reprodutivos ganha terreno, Abril ressoa tanto em Tbilisi como em Lisboa. Para Kulumbegashvili, o perigo está na ilusão de que os direitos adquiridos são permanentes: “A geração que veio depois da minha acreditou que os direitos das mulheres sempre lá estariam. E isso é uma ilusão.”
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Portugal recebe o filme proibido
Proscrito na Geórgia e sem direito a distribuição no país natal da autora, Abril chega agora às salas portuguesas, trazendo consigo uma reflexão dura mas necessária. É um filme que, mais do que entreter, procura inquietar, lembrando-nos de que a resistência também se escreve em silêncio — e que o esquecimento é o maior inimigo da conquista de direitos.



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